quarta-feira, 28 de setembro de 2011

UMA HISTÓRIA DA ÉPOCA DA SECA

Vento que agita esta manhã fria. Peço-te que leve de mim os cuidados dos dias para que possa narrar uma coisa que me contaram aqui neste Vale do Capão e que será bom que todos escutem, pois é uma história que diz de uma verdade. O dia agora começa assumindo o trono da madrugada, levando discrição às coisas; mas em pouco morrerá aos pés da noite tal como as ondas que falecem ao beijar a praia. Tal como estas águas do rio sem nome que banha o vale: Perder-se-ão ao encontrar o mar, lá bem longe, onde o Paraguaçu deságua em ampla baía. Tal se passe com minhas inquietações, que tenho algo a relatar.
O vento acena-me com garoa fresca. Boa água. Bem melhor a chuva que o estio. A poeira esfola o corpo e a seca fere a alma, porque traz aquele medo que centenariamente ameaça esta gente sertaneja. Como naqueles idos de mil novecentos e trinta. Os mundos lá fora da Bahia do Brasil sofriam com as agruras da economia, gente morria de fome e desemprego. Aqui, nem ninguém sabia de nada dessas coisas de quebra de bolsa. Aqui o mortal nascia sob o nome dos coronéis e assim vivia antes de açambarcar seus sete palmos de terra. Só isso. Mas todos sofriam porque a seca batia forte e seco no chão gretado e dorido. O vale tem o dom do verde. Até hoje, mesmo quando a chuva some, a mata se mantém embora o chão se cubra das folhas secas como se acontecessem outonos. Por isso, embora o povo alçasse ao céu os olhos procurando as chuvas, esperando que as nuvens que foram ao norte beber água voltassem pejadas e parissem trovoadas (que não chegavam), pelos menos o chão mantinha alguma umidade alimentada pela névoa da serra e, dessa maneira, a comida era garantida.
Foi por isso que a gente do agreste, dos campos entre o recôncavo dos rios da baía de Todos os Santos e a subida da Chapada acorreu a estes lugares pedir caridade de comida. Pelo menos a raspa que ficava da produção de farinha. E o povo bom deste pedaço de mato dentro do seu possível partia o que tinha pra somar vida pros demais. Conta-se daquela época de tanta dor e tanta bondade que lá no Pati, outro vale muito perto (e mais úmido) daqui uma mulher chegou com os filhos e chorou por um pouco de farinha. Ali perto de onde agora mora Seu Delsom havia um sujeito com sua casa de farinha. A mulher lhe pediu um pouco e ele de gozação encheu um pequeno saco de pano com uns dois quilos de areia, como se fosse a farinha pedida. Entregou-o à mulher que ao ver aquela quantidade do alimento umedeceu os olhos em oferta de gratidão. Sorriu o homem, mas não como parecia, pelo prazer do bem. Afastou-se a mulher com seus pequenos feliz por encontrar um algo para comer. E comeu. Pois por alguma arte do mundo a areia virou farinha da boa e os meninos com a mãe se fartaram. O homem esperou que voltasse a mulher a queixar-se, só pra rir um tanto de sua cara e gozar da própria crueldade. Divisava-a acolá no meio do mato e aos meninos que pareciam felizes. Deu de ombros pensando que esse povo esfomeado do sertão podia até mesmo comer areia sem dar-se conta. Entrou e qual não foi sua surpresa ao descobrir que sua preciosa farinha fruto do tanto trabalho que tivera, toda ela sem grão faltar tinha virado areia fina e branca, bonita, mas areia.
Pode ser que o leitor ache que não pode ser verdade esta história, mas posso dizer que quem me contou não é dado a falar fantasias e houve quem confirmasse de pronto e com renovada certeza. Vai daí que se não ponho a mão no fogo, tampouco tiro e conto, e o que você vai fazer com isso é coisa sua e não minha, que a minha é só dar-me ao tino de contar.
Em 27/9/11 recebam um abraço de Aureo Augusto.

2 comentários:

  1. Bela descrição, tão poética que até dá vontade de ver seca no sertão, pra observar o contraste com o vale. Risos. (seria engraçado se não fosse trágico).
    Mas a história da farinha é uma das muitas versões do "feitiço contra o feiticeiro", apenas uma ilustração de fundamento moral. Seria plausível, sim, se o total da farinha do fazendeiro fossem os dois quilos: Tratar-se-ia de um equívoco e troca dos sacos. Mas um proprietário de casa de farinha ter apenas dois quilos do produto, nem numa seca se concebe.
    Mas é legal ler e ouvir contar essas coisas, nos deixa com um alento mais vigoroso.
    _Abraço.

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  2. As lendas são algo nem sempre mto lógico, mas são, além de algo lúdico, um momento em que os mais velhos ensinam aos moços regras sociais, e, mesmo, sabedoria. Concordo, nos alentam.
    bjs

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